A confirmação de um caso de peste bubônica no final de agosto nos Estados Unidos reverberou em diversos países. Muitos imaginam que essa doença — historicamente conhecida como “peste negra” — tenha ficado no passado, especificamente na Idade Média, quando se estima que tenha causado a morte de 75 milhões a 200 milhões de pessoas em todo o mundo. Mas, na verdade, ela ainda está entre nós — assim como outras enfermidades que entraram para a história.
Além da peste bubônica, cólera e hanseníase são exemplos dessas condições. E muitas delas, ainda hoje, são negligenciadas. “Isso ocorre por vários motivos, como pelo fato de que a prevalência de muitos desses problemas está relacionada a cenários de baixa condição socioeconômica e ausência de vacinas eficazes para erradicar ou controlar os patógenos”, explica a infectologista Christiane Reis Kobal, do Einstein Hospital Israelita. É justamente isso o que leva aos atuais surtos ou casos localizados.
Todos os microrganismos patogênicos têm como objetivo biológico primordial se perpetuar e, para tanto, buscam formas de se reproduzir. Na prática, isso significa que, por mais que o ser humano consiga criar barreiras para tentar desacelerar esse processo, a seleção natural caminha em direção a tentar selecionar características evolutivas que permitam a esses agentes infecciosos driblar nossos mecanismos de proteção.
Por isso é tão difícil pensar na erradicação de doenças. “Em toda a história da humanidade, a única infecção que conseguimos de fato impedir que ocorra na natureza é a varíola. Tanto é que, desde 1980, quando a OMS a declarou erradicada, acabou a exigência de medidas de controle, como a vacinação. Mas essa não é a regra”, explica o epidemiologista Expedito José de Albuquerque Luna, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
A desigualdade social e as falhas na vigilância epidemiológica favorecem os surtos. Daí porque a chave para superar esses problemas está em garantir o saneamento básico e o acesso à água potável, ao mesmo tempo em que se oferece antimicrobianos e vacinação à população.
“Os agentes infecciosos, sejam eles bactérias, vírus ou fungos, não desaparecem facilmente da Terra, pois fazem parte dos nossos ecossistemas tanto quanto as plantas e os animais”, pontua Kobal. “Mas, com o aperfeiçoamento das técnicas de prevenção e tratamento, muitas das doenças causadas por esses patógenos podem ser melhor controladas – mesmo que não erradicadas.”
A seguir, saiba mais sobre as doenças que, ao contrário do que muitos imaginam, não ficaram no passado.
Peste bubônica
O surgimento dos antibióticos revolucionou a forma de cuidado da peste bubônica, cujos sintomas incluem febre alta, dor generalizada, falta de apetite, náusea e formação de abscessos de coloração roxa ou preta. Da mesma forma, o incentivo à higiene pessoal e o investimento em saneamento básico diminuíram a presença de roedores nas cidades, e são eles que podem carregar as pulgas transmissoras da bactéria Yersinia pestis, causadora da doença.
Como resultado, a prevalência da condição caiu. Um documento técnico publicado em 2023 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) indica que, entre 2019 e 2022, apenas seis países notificaram episódios da doença em seu território. Ao todo, foram 1.722 casos e 175 óbitos. A República Democrática do Congo, na África, aparece como principal região endêmica, com 1.292 casos e 79 mortes, e é seguida por Madagascar, China, Mongólia, Uganda e Estados Unidos.
O Brasil não registra casos de peste desde 2005. Mas isso não significa que não exista o risco. Vale lembrar que tanto a Região Serrana do Rio de Janeiro quanto o Semiárido Brasileiro (que cobre a região Nordeste e uma parte de Minas Gerais) são considerados pela OMS como potenciais focos naturais de peste.
Até os anos 1990, existia um programa administrado pelo Ministério da Saúde focado no controle da peste bubônica. Ele previa, entre outras atividades, conduzir coletas de roedores para tentar identificar a presença da Yersinia pestis em suas pulgas e assim ajudar no rastreio da doença. Contudo, a partir de 2000, essa iniciativa foi repassada para o Sistema Único de Saúde (SUS) em âmbito municipal. “Nesse cenário, existe a chance de que certas doenças pouco visíveis pelo baixo número de casos sejam deixadas de lado no registro”, observa Luna.
Na visão do epidemiologista, nem todo profissional de saúde tem o treinamento adequado para identificar as características dessa condição rara, o que pode contribuir para um cenário de subdiagnóstico. “É possível que a gente tenha alguns casos não diagnosticados espalhados pelo país. Mas, se existirem, eles são poucos e não muito graves, caso contrário, acabariam sendo notados e notificados”, pontua o pesquisador.
Hanseníase
Causada pela bactéria Mycobacterium leprae, essa doença aparece na Bíblia e até em obras anteriores. No passado era conhecida como lepra, mas esse termo caiu em desuso a partir da década de 1970, em um esforço de tentar superar preconceitos associados à condição. Segundo uma revisão publicada em 2004 na revista Saúde e Sociedade, há indícios da sua existência desde 2698 a.C. na China Imperial. É possível que, da Ásia, tenha migrado gradualmente para a Europa e atingido a América no contexto da colonização.
“A hanseníase foi considerada um problema mundial até o século 19. Com a melhoria nas condições de vida, principalmente devido ao saneamento básico, sua incidência começou a cair nas regiões que, hoje, são consideradas desenvolvidas, tais quais a Europa Ocidental, os EUA e o Japão”, relata o professor da USP. “Mas ela permaneceu circulando em alguns lugares menos desenvolvidos, como o Brasil.”
Por aqui, a hanseníase ocorre de forma endêmica. Em 2024, 172.671 novos casos foram notificados no mundo, sendo 12,8% deles só no Brasil (22.129), de acordo com a OMS. Isso coloca o país em segundo lugar no ranking de maior número de casos no globo, atrás apenas da Índia (100.957).
“Entre os motivos que dificultam a erradicação está seu típico diagnóstico tardio, em razão de um quadro que demora a manifestar sintomas e, quando o faz, apresenta manifestações clínicas distintas em cada pessoa”, aponta Kobal. A doença é caracterizada pelo aparecimento de manchas na pele, que podem ser brancas, vermelhas ou marrons, e pela sensação de formigamento nas mãos e nos pés.
Se não tratada precocemente, pode causar complicações que incluem diminuição da força muscular na face e nos membros e a formação de nódulos espalhados pelo corpo. O tratamento medicamentoso é baseado em três antimicrobianos, que estão disponíveis via SUS. O processo, porém, é contínuo e demorado, variando de seis meses a um ano.
Cólera
Acredita-se que a cólera, uma doença bacteriana causada pela espécie Vibrio cholerae, circule desde o século 12. Segundo uma pesquisa publicada em 1994 no periódico Physis, ela teve origem na Ásia, mas foi só foi no século 19 que ocorreu a primeira pandemia. Desde então, há registro de mais seis epidemias globais, sendo que a sétima iniciou em 1961 e segue vigente.
De acordo com um relatório publicado pela OMS, entre janeiro e agosto de 2025, foram notificados um total acumulado de 462.890 casos de cólera e 5.869 mortes em 32 países. A região do Mediterrâneo Oriental registra os números mais elevados, seguida por África, Sudeste Asiático, América e Pacífico Ocidental. Episódios de crise, como aqueles gerados por desastres naturais ou guerras, favorecem a transmissão da doença.
No Brasil, o Ministério da Saúde indica que não há ocorrência de casos autóctones (ou seja, originados no território) desde 2006. Mesmo os casos importados são raros por aqui — o último, identificado no Rio Grande do Norte em 2018, teve origem em contaminação na Índia.
A cólera é transmitida por contato fecal-oral direto ou pela ingestão de água e alimentos contaminados. Os casos são muito comuns em regiões subdesenvolvidas e em desenvolvimento, onde o acesso a saneamento básico é desigual.
A maioria das pessoas infectadas não manifesta sintomas. Mas, quando aparecem, incluem diarreia, náusea e vômito, que podem ser facilmente confundidos com outros tipos de quadros clínicos. A demora na identificação da doença ainda provoca o atraso do tratamento, e o quadro pode evoluir para complicações graves, como desidratação intensa e choque hipovolêmico (diminuição da quantidade de sangue circulante no corpo).
“Existem vacinas para prevenir a cólera, mas elas são orais e têm cobertura e eficácia muito pequenas. Também nunca foram disponibilizadas na rede pública e, mesmo no setor privado, não costumam ser oferecidas em todas as regiões, o que dificulta a proteção das populações mais vulneráveis”, destaca a infectologista do Einstein. Segundo a OMS, o estoque médio de vacina oral contra a cólera no mundo era de apenas 2,6 milhões de doses em agosto – quase metade dos 5 milhões recomendados para casos de emergência.
Com Informações: CNN Brasil







