SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, conseguiu agregar uma dimensão militar à coalizão internacional que pretende montar para fazer frente à assertiva China de Xi Jinping.
Depois de obter um comunicado mais duro contra a ditadura comunista durante o encontro do G7 no Reino Unido, o americano operou para que a Otan, aliança militar fundada em 1949 para conter a União Soviética, destacasse Pequim como um risco para os interesses de segurança do clube.
No comunicado que será divulgado nesta segunda (14) após a primeira cúpula da organização a que Biden compareceu como presidente, contudo, a Rússia segue como a protagonista das preocupações ocidentais.
O país de Vladimir Putin, com quem Biden irá se encontrar em Genebra na quarta (6), é visto como uma "ameaça" no texto de 45 páginas. A relação do Ocidente com Moscou é a pior desde a Guerra Fria.
Mas a China é citada várias vezes no texto, vazado para a imprensa, como um país que "apresenta desafios".
"As ambições colocadas pela China e seu comportamento assertivo apresentam desafios sistêmicos à ordem internacional baseada em regras e às áreas relevantes para a segurança da aliança", diz o texto.
Nele, o desenvolvimento naval e nuclear dos chineses é algo a ser acompanhado de perto, assim como sua proximidade militar com Moscou. Xi e Putin têm uma aliança informal há anos, e ela ganhou mais corpo com a chegada de Biden ao poder.
O documento do G7, o clube das nações mais desenvolvidas, de domingo (13), que listou a repressão em Hong Kong e a muçulmanos na China, foi chamado de difamatório pela embaixada chinesa em Londres.
O democrata quer remediar o estrago deixado por Donald Trump na relação transatlântica com seus parceiros ocidentais. Na cúpula de 2019, quando a Otan completou 70 anos, o republicano deixou o encontro após o vazamento de um vídeo no qual outros líderes zombavam dele.
Os quatro anos de Trump na Casa Branca viram o mandatário inclusive ameaçar deixar a aliança se não houvesse um aumento do dispêndio militar dos sócios. A Otan mira uma meta de gasto bélico de 2% do Produto Interno Bruto de seus 30 integrantes até 2024.
Hoje, apenas EUA e outros 10 países cumprem objetivo. Seis dessas outras nações são países que integravam o bloco comunista liderado pela União Soviética até 1991, quando o império de Moscou desmoronou.
Com efeito, integram o grupo que mais teme a renovada agressividade da Rússia de Putin. Em 2014, quando o Kremlin anexou a Crimeia e promoveu uma guerra civil no leste da Ucrânia para impedir que o novo governo em Kiev se unisse à Otan, apenas três países da aliança gastavam mais de 2% do PIB com defesa: EUA, Reino Unido e Grécia.
No caso de Atenas, contudo, a qualidade da composição de seu orçamento militar é baixa: em 2020, 75% dele foi comprometido com pessoal, um índice semelhante ao do Brasil (79%). Nos EUA, que têm o maior poderio militar do planeta, o índice é de 37,5%.
No geral, a percepção de que a Rússia era uma ameaça, já sentida na guerra que evitou a entrada da Geórgia na Otan em 2008, na Ucrânia e mesmo com sua intervenção para salvar da ditadura síria em 2015, mudou o cenário.
Em 2014, apenas 6 dos 30 membros da Otan gastavam 20% ou mais de seu orçamento militar com equipamento, o padrão-ouro da aliança. Em 2020, são 18.
Putin já disse qual é sua prioridade: impedir a aproximação de forças da Otan de seu território e, de preferência, restabelecer áreas tampão como a ditadura aliada na Belarus e a Ucrânia conflagrada. Em 1949, as fronteiras iniciais da Otan ficavam a 2.000 km de Moscou; agora estão a 800 km.
A China vem sendo mencionada como uma adversária potencial já há alguns anos pela Otan, mas nunca de forma tão incisiva. Isso é uma vitória de Biden e desagrada a alguns dos membros da aliança, como a Hungria e a Polônia, que querem boas relações com Pequim.
Os poloneses são talvez os mais efetivos membros da Otan a leste, e os mais desconfiados em relação a Putin –ex-repúblicas soviéticas, os Estados Bálticos também o são, mas dependem da aliança para se defender e têm nuances na relação com Moscou, devido às grandes populações russas étnicas em seus territórios.
Além dos EUA, que inauguraram sob Trump em 2017 a Guerra Fria 2.0 contra Xi, só ampliada até aqui por Biden, a França também tem alguns pontos de disputa com os chineses, em particular acerca da influência sobre ex-colônias suas na África.
Paris mantém uma considerável operação militar visando conter o terrorismo em toda a faixa conhecida como Sahel.
Por outro lado, o presidente Emmanuel Macron tem mantido uma linha de diálogo aberta com Putin, assim como a chanceler alemã, Angela Merkel.
Em ambos os casos, os negócios falam mais alto: os franceses exploram gás no Ártico russo em competição com Pequim e Berlim conta com o novo gasoduto Nord Stream 2 para aumentar seu consumo do produto russo.
Isso leva ao temor de que, ao fim, o pragmatismo econômico se sobreponha. Nesta segunda, o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, criticou Biden por encontrar-se primeiro com Putin e não com ele, apesar de sua promessa de apoio quando o russo concentrou tropas junto às suas fronteiras, em abril.
Em entrevista coletiva, Zelenski afirmou que está pronto para unir-se à Otan e que espera uma posição clara dos EUA sobre isso. É difícil: as regras do clube não permitem países com disputas territoriais ativas de participar dele.
Disse também que é "inevitável" que se reúna em breve com Putin para discutir a questão do leste de seu país, controlado por força pró-Rússia numa conflito que já matou 14 mil pessoas.
Com isso, a cúpula da Otan se funde, politicamente, à reunião do G7 e ao encontro Biden-Putin de quarta numa tentativa do americano de configurar sua política externa multifacetada. Como o lamento de Zelenski deixa claro, não há como agradar a todos no processo.
Biden tentou acalmar os parceiros a leste com uma conversa à parte com o presidente polonês, Andrzej Duda, e parece ter aberto um canal pessoal com Recep Tayyip Erdogan, o autocrático líder turco, que vem se desentendendo com os EUA e os parceiros na Otan há anos.
Outro tema polêmico debatido nesta segunda foi a saída da Otan do Afeganistão, após Biden dar até 11 de setembro deste ano para que os EUA deixem o país invadido em 2001. A deterioração da segurança ante a volta do Taleban é clara.
A Otan tem quase 7.000 soldados no país, enquanto os americanos oficialmente mantêm 2.000.
Segundo o texto aprovado pela aliança, será feita uma revisão do conceito estratégico da Otan, atualizado mais recentemente em 2010 –sem nenhuma menção à China e vendo a Rússia como um parceiro potencial.
Pontos importantes de doutrina militar serão incorporados: ataques no ou vindos do espaço serão elegíveis a retaliação militar, e será clarificado melhor o famoso artigo 5º da Tratado do Atlântico Norte, que define a defesa coletiva dos integrantes em caso de algum membro ser atacado.
No mais, preocupações com a instabilidade em Belarus, com a mudança climática e com resposta a pandemias após a Covid-19 seguem na agenda da organização.
CRONOLOGIA DA OTAN
1949 – Os 12 países fundadores da Otan assinam o Tratado do Atlântico Norte em Washington.
1952 – Turquia e Grécia aderem.
1955 – A Alemanha Ocidental se une à Otan, após anos de desnazificação.
1956 – Primeira crise interna, com EUA se opondo à intervenção franco-britânica na crise de Suez.
1961 – A Guerra Fria eleva patamar com a construção do muro de Berlim.
1966 – França deixa a estrutura de comando da Otan, acusando excesso de poder americano.
1982 – Espanha entra na Otan.
1989 – Cai o muro de Berlim, começo do fim do comunismo soviético.
1990 – Reunificação alemã, Alemanha Oriental deixa o Pacto de Varsóvia.
1991 – Fim da União Soviética e do Pacto de Varsóvia.
1994 – Primeira ação militar da Otan: derrubada de quatro aviões sérvios na Bósnia.
1994 – Guerra na Chechênia expõe fraqueza militar russa; Moscou adere a programa de parceria.
1996 – Russos dão apoio a tropas da Otan na ex-Iugoslávia.
1999 – Otan ataca a Iugoslávia, início do afastamento russo; Polônia, Hungria e República Tcheca aderem.
2001 – Em resposta ao 11 de Setembro, é invocado pela primeira vez o artigo 5 da Otan, de defesa mútua em caso de agressão.
2003 – Mais um racha: países liderados pela Alemanha vetam Otan na Guerra do Iraque.
2004 – Expansão ao leste, com sete países ex-comunistas, inclusive os Estados Bálticos, elevando o número de membros para 26.
2008 – Para vetar adesão à Otan, Rússia trava guerra com a Geórgia.
2009 – França volta ao comando militar da Otan; Albânia e Croácia aderem.
2011 – Com mandato da ONU, Otan controla espaço aéreo da Líbia.
2014 – Rússia anexa a Crimeia e intervém no leste da Ucrânia para evitar adesão de Kiev ao Ocidente.
2017 – Montenegro adere à Otan.
2018 – Racha entre EUA de Trump e Otan cresce com cobranças americanas por mais gasto.
2019 – Trump deixa cúpula da Otan após se desentender com outros líderes.
2021 – Biden assume e tenta renovar laços com a aliança. Putin ameaça a Ucrânia, e Otan oferta apoio a Kiev.
Fonte: Notícias ao Minuto