Enquanto a Libras se consolida como ferramenta de inclusão, sua popularização, historicamente atrelada a instituições cristãs, exclui práticas e vocabulários das culturas africanas, indígenas e de outras religiões – é o que defende o professor de Letras Libras da Universidade do Estado do Pará (Uepa), Ozivan Perdigão. Para debater o assunto, a universidade realizou, no dia 4 de novembro, em alusão ao Dia da Consciência Negra, o I Seminário de Tradução de Língua de Sinais e Negritude que, segundo o professor, foi bem recebido e gerou um debate importante sobre o racismo religioso e estrutural.
A partir da Constituição de 1988, leis como a LDB de 1996 e a Lei nº 10.098/2000 garantiram direitos e acessibilidade para essa população. A Libras, por sua vez, foi reconhecida como língua oficial em 2002 e regulamentada em 2005, assegurando a formação de professores e o acesso a profissionais especializados. Entretanto, a popularização da Libras no Brasil, iniciada na década de 1980, ocorreu principalmente através das igrejas evangélicas, o que resultou em um viés cristão na construção da linguagem e na comunidade surda, conforme detalha o especialista:
“A base mesmo dos surdos, principalmente o aluno surdo, ainda é muito cristã”, afirmou o professor Ozivan Perdigão, que aponta a influência da igreja Batista e das Testemunhas de Jeová na difusão da Libras, o que acabou por criar um vocabulário limitado ao imaginário judaico-cristão, negligenciando outras práticas religiosas.
Estudante relata experiência de discriminação
Suellen Santos, estudante do segundo semestre de Letras – Libras da Uepa, relatou ter sofrido preconceito religioso durante sua formação como tradutora e intérprete de Libras. Ao tentar realizar seu estágio obrigatório em um terreiro de Umbanda, Suelen teve sua solicitação negada, enquanto colegas que optaram por igrejas evangélicas não enfrentaram obstáculos.
“Disseram que não, que não poderia. Eu questionei e me falaram que seria porque não tinha um coordenador para me avaliar lá. Só que, para as igrejas batistas, católicas e evangélicas, mesmo que fora da lista fornecida, não houve o mesmo problema”, conta Suelen sobre a negativa da instituição. A estudante só conseguiu realizar o estágio após a troca do coordenador do curso, tendo que cumprir a carga horária em uma igreja adventista. O terreiro de Umbanda, comandado por um pai de santo surdo, ficou sem intérprete.
Suellen Rodrigues, discente da Uepa, enfrentou discriminação para fazer estágio em terreiro. (Marcelo Rodrigues / Ascom Uepa)
Em seu relato, Suellen também descreve o constrangimento que sofreu na igreja adventista por conta do cabelo crespo e da extensa tatuagem na perna esquerda. A estudante conta que foi pressionada a cobrir o desenho e prender o cabelo para se adequar aos padrões da igreja. “O curioso é que todas essas ‘orientações’ partiram de uma colega intérprete. Na igreja não fizeram nenhuma observação, mesmo eu tendo usado um vestido que deixava à mostra a tatuagem e o cabelo semi-preso”, diz Suelen.
Diante dessa realidade, o professor Ozivan organizou o I Seminário de Tradução de Língua de Sinais e Negritude para discutir a inclusão da cultura e religiosidade afro-brasileira e indígena na comunidade surda. “A perspectiva é que daqui pra frente nós venhamos ter mais eventos relacionados a essas realidades. Não apenas com a negritude, mas também as questões da cultura e religiosidade indigena”, declarou Ozivan.
Com Informações: O Liberal