Trabalhadores processam Volkswagen por regime análogo à escravidão

Volkswagen é condenada a pagar R$ 165 milhões por trabalho análogo à escravidão na ditadura

Quatro trabalhadores escravizados durante a ditadura civil-militar, nas décadas de 1970 e 1980, em uma propriedade da Volkswagen do Brasil, no Pará, acionaram a Justiça para reivindicar reparação pela condição desumana a que foram submetidos. Cada um pede R$ 1 milhão por danos morais e R$ 1 milhão por danos existenciais, valores definidos com base no porte econômico da marca, pelo tamanho dos prejuízos causados às vítimas e pelo que representam socialmente. 

Os processos sucedem uma ação civil pública, isto é, coletiva, em que o Ministério Público do Trabalho (MPT) pede R$ 165 milhões por danos morais coletivos, retratação pública e a ativação de ferramentas como um protocolo aplicável a incidentes semelhantes, um canal de denúncias e a realização de ações de fiscalização. Nessa ação pública, a companhia foi condenada em agosto deste ano, mas entrou com recurso.

O local onde foram submetidos ao regime de trabalho análogo à escravidão foi a Fazenda Vale do Rio Cristalino, em Santana do Araguaia (PA), pertencente à Companhia Vale do Rio Cristalino Agropecuária Comércio e Indústria (CVRC), uma subsidiária da Volkswagen. Conforme destaca o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, “a propriedade em questão, com cerca de 140 mil hectares – quase o tamanho da cidade de São Paulo –, recebeu incentivos fiscais e recursos públicos para a criação de gado à época – tornando-se um dos maiores polos do setor –, acentuando a responsabilidade institucional da empresa.” 

A pasta enviou representantes ao município paraense de Redenção, em meados de maio deste ano, para participar de uma mobilização organizada por movimentos sociais, sindicatos, universidades e parlamentares.

O caso chegou a parlamentares e às autoridades competentes pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), que documentou as violações e até hoje acompanha o andamento dos processos judiciais. Como ocorre geralmente, os trabalhadores foram atraídos pela companhia por intermediários, chamados popularmente de “gatos”, que fazem a ponte entre quem escraviza e as vítimas escravizadas, com promessas de trabalho digno. 

De acordo com a CPT e o Coletivo Veredas, de advocacia popular e defesa dos direitos humanos, a proposta apresentada aos trabalhadores aliciados foi a de receber uma boa remuneração para derrubarem árvores de vegetação nativa, formação de pastagens e serviços de construção civil. A Fazenda Volkswagen, como ficou conhecida, funcionou de 1974 a 1986.

O advogado José Vargas, do Veredas, assinala que a subjugação protagonizada pela fabricante de automóveis revela “a face empresarial da ditadura” e que a montadora, no processo aberto pelo MPT, buscou convencer a Justiça de que o cerceamento imposto por ela aos trabalhadores era prática corrente naquele período e, portanto, não foi errado nem ilegal. 

“Houve uma tentativa de naturalizar a servidão por dívida”, ressaltou, em entrevista à Agência Brasil.

“O advogado defende que é um caso que vai além da divida trabalhista, se tratando de uma “dívida histórica.”

Além de ter “explorado a mão de obra a qualquer custo e ampliado a desigualdade, em vez de reduzi-la”, a Volkswagen, acrescenta Vargas, fermentou na comunidade das vítimas a antipatia dos demais por elas, já que o governo golpista e aliados adotavam a vertente desenvolvimentista e as vítimas passaram a ser vistas como pedras no caminho de quem queria prosperar com a montadora, por denunciar a violação de seus direitos. “É inconteste que a empresa lucrou em cima da exploração”, diz.

O integrante do Coletivo Veredas frisa, ainda, o que chamou de  “lado mesquinho da montadora”, quando recorre da decisão de milhões de reais do processo do MPT, enquanto seu faturamento é de cifras significativamente maiores, na casa dos bilhões. 

Esperteza e sorte

Um dos trabalhadores que ingressaram com a ação, Isaías* foi recrutado para trabalho escravo contemporâneo com quatro amigos, tão jovens quanto ele. Todos eram adolescentes e conheciam seu aliciado e confiavam nele e, por isso, não duvidaram de nada quando o homem os abordou oferecendo uma oportunidade de fazer dinheiro no Pará. 

Como o “gato”, os garotos moravam no Mato Grosso e largaram os estudos para levar o plano adiante e completá-lo rapidamente, em um mês. Hoje com 60 anos de idade, Isaías fez até a 8ª série do ensino fundamental. 

Eles acreditavam ter sido “contratados” para trabalhar um lote apenas, mas não viram retorno financeiro conforme o tempo previsto, tampouco no segundo mês, permanecendo lá por cerca três meses, sob coação, instalados em barracas precárias, sem poder fazer a higiene pessoal nem preparar alimentos adequadamente.

Já começavam devendo, a começar pelo valor gasto com o deslocamento até a fazenda, conta que aumentava à medida que os dias viravam, com alimentos e outros itens que consumiam. Escaparam inventando um prazo para se apresentar para o alistamento militar obrigatório, mesmo sem ter idade para isso, mentira em que os homens que os vigiavam caíram. 

Uma tática irônica, de provocar temor nos jagunços com um pretexto envolvendo as Forças Armadas, em plena ditadura. “Eles ficaram, acho, com medo [de serem punidos por atrapalhar sua entrada no serviço militar] e aí nos liberaram.”

Foram autorizados a deixar a fazenda, mas sem um tostão, razão por que tiveram que pegar caronas do Pará ao Mato Grosso, em caminhões. O esquema de solidariedade garantiu a chegada ao estado de origem, e o trecho restante, até a cidade natal, foi feito com passagens cobertas pela CPT. “Eram muitos pistoleiros. Todos armados. Não tinha ninguém sem arma, não”, conta a vítima, esclarecendo o motivo pelo qual nunca cogitaram fugir.

“Foi muito difícil. Nossa sorte foi que saímos com vida”, resume. 

Defesa

Procurada pela reportagem, a Volkswagen do Brasil afirmou “que seguirá em busca de segurança jurídica no Judiciário Brasileiro”.

“Com um legado de 72 anos, a empresa defende consistentemente os princípios da dignidade humana e cumpre rigorosamente todas as leis e regulamentos trabalhistas aplicáveis. A Volkswagen reafirma seu compromisso inabalável com a responsabilidade social, que está intrinsecamente ligada à sua conduta como pessoa jurídica e empregadora.”

Trabalho escravo contemporâneo

A legislação brasileira atual classifica como trabalho análogo à escravidão toda atividade forçada – quando a pessoa é impedida de deixar seu local de trabalho -, desenvolvida sob condições degradantes ou em jornadas exaustivas.

Também é passível de denúncia qualquer caso em que o funcionário seja vigiado constantemente, de forma ostensiva, pelo patrão.

De acordo com a Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete), jornada exaustiva é todo expediente que, por circunstâncias de intensidade, frequência ou desgaste, cause prejuízos à saúde física ou mental do trabalhador, que, vulnerável, tem sua vontade anulada e sua dignidade atingida.

Já as condições degradantes de trabalho são aquelas em que o desprezo à dignidade da pessoa humana se instaura pela violação de direitos fundamentais do trabalhador, em especial os referentes a higiene, saúde, segurança, moradia, repouso, alimentação ou outros relacionados a direitos da personalidade.

Outra forma de escravidão contemporânea reconhecida no Brasil é a servidão por dívida, que ocorre quando o funcionário tem seu deslocamento restrito pelo empregador sob alegação de que deve liquidar determinada quantia de dinheiro.

Como denunciar

O principal canal para se fazer uma denúncia é o Sistema Ipê. As denúncias podem ser apresentadas de modo anônimo, isto é, sem que o denunciante se identifique, caso prefira.

*A real identidade do entrevistado foi trocado, a fim de preservá-lo.

Fonte: Notícias ao Minuto

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